18 de dezembro de 2013

Poema-faísca

O mundo está em trevas, é verdade
mas tens criado sombras em demasia
                                                        em tua cabeça cheia

aquilo que teus olhos não tocam
te asfixia com interrogações

não tornes o medo teu pão de cada manhã
a ansiedade a bússola pra cada passo teu
nem a angústia um travesseiro
                                              a sustentar tua consciência, que pesa

o agora é ameaça: “me espreita, se aproxima, me ataca”
                                                                                     mas não aniquila

viver é um verbo que não se mistura com a morte
abandona essa penumbra que te envolve
a cada esquina da tua vida

pois o futuro é um sol que sempre está a nascer

28 de novembro de 2013

Curvilínea

Nada que me sai dessa caneta azul é meu
as curvilinhas
                    que invadem esse papel
não me são próprias

o que hoje sou-estou
não é o que me apetece
mas esse tanto
                       castelo-de-areia onde os grãos são pessoas
com um pouco que penso ter escolha
                                                      minha-eu

nesta tinta que marca um pouco do que vi(vi)
estão diluídas multidões que cruzaram o meu estar aqui
alguns, rostos nítidos
                               outros, silhuetas fuscas
presentes todos nos traços
que minha mão sozinha pinta

2 de novembro de 2013

De pranto

Espera outra hora
outro dia
outra alvorada

adia o que não se pode
desperdiça mais uma noite
com todas suas lufadas

deixa a vida para outro quando
outro ano
outro nunca

o momento deveria ser outro
ignora o agora

te enterra de pronto

6 de outubro de 2013

Escrito sem-gaveta

Não quero escrever versos
que tenham serventia

que se guardem em gavetas
sob poeira e teias

poesia que seja povoada
por ácaros
tártaro
nem pelo abandono

quero-quero escritos sem serventia
                                nem servidão

que tomem emprestados
os dotes alados
de seres como borboletas

e possam ser lar
de ícaros
pássaros
e daquilo que não tem dono

14 de setembro de 2013

Descionário - um esboço da loucura das palavras

(amparado em consultas ao material onírico de Barros e Naranjo)


Amigo (s. m.)

Pessoa que, em dias difíceis de ver o sol,

pinta o céu de azul clarinho;

Condição enferma não abundante e desmedida

que arruína as pessoas
e as torna eternas;

Pintor capaz de lapidar sentimentos

mais coloridos que arco-íris
em corações-de-pedra;


Capitalismo (s. m.)


Ecossistema onde os seres humanos

são menores que a Bolsa
e do que seus próprios bolsos;

Momento da humanidade em que as coisas caminham

se abraçam e respiram
e as pessoas nem;

Forma de reduzir mulheres e homens a utilidades

vide homem-bomba, mulher-de-negócios
homem-chave, primeira-dama etc.;


Solidariedade (s. f.)


Sentimento que engradece pessoas pequenas

e as torna não-maiores
nem menores do que as outras;

Mania de abordar gente como passarinho,

e achar que as pessoas ficam mais magníficas
quando de asas abertas;


Amor (s. m.)


Demência que acomete venturosos

faz primavera no asfalto
e neblina o fim da estrada;

Desastre natural que faz o ser humano

sentir-se parte do jardim do mundo;


Socialismo (s. m.)


Maneira desvariada do ser humano se tornar gente;


Semente de complicado germinar

que se agua com o suor de mulheres e homens
e já produz alegrias e frutos outros
antes de seu total desabrochar;


Sonho (s. m.)


Objeto abstrato que, assim como o horizonte,

quando se tenta tocá-lo
põe-se em perigo a (des)ordem das coisas;

Teimosia que faz as pessoas pensarem

que podem caminhar sobre as nuvens;


Abraço (s. m.)


Medicamento recomendado contra a melancolia

e os sintomas que dessa decorrem;

Item do gestuário humano

que mais aproxima, cordialmente, as pessoas;

Procedimento utilizado para deixar marcas na roupa

e no espírito alheio;

13 de agosto de 2013

Céu-da-terra

Enquanto caminhava
sobre a areia molhada daquela praia
teve uma estupenda descoberta

avistou nas poças d’água
abandonadas pelo mar que recuava
outro céu que até então não havia notado

o céu-da-terra
diferente do habitual
parecia-lhe palpável

cada passo d’água dado
contorcia o arranjo natural das estrelas
e de todos os seres que ali podiam existir

via também que cada poça
representava galáxias diferentes
divididas naquela terra cheia de astros

como pudemos ter demorado tanto a pôr o pé na lua?

10 de julho de 2013

A humanidade das palavras

As palavras estão enlaçadas à humanidade. Caminham juntas a ela e não podem aprisioná-la.

É agradável observar como podemos moldá-las, dando formas e sentidos que ainda não tínhamos experimentado – assim como, quando crianças, brincávamos com as nuvens.

Recentemente a palavra vandalismo sofreu uma chuva de cacetadas e foi sufocada por gás lacrimogênio, se convertendo em algo que faz sangrar quem se atormenta com anemia nas filas de hospitais – desfiladeiros dos moribundos – e se transformando na violência contra quem acredita existirem outras fomes que não a do estômago – literatura e música são nutrientes imprescindíveis para que uma pessoa se torne humana. Assim, vândalo é aquele que crê que os transportes não devem carregar pessoas, mas dinheiro para os bolsos de umas poucas.

O verbo sonhar também ganhou um significado novo. Hoje, é sinônimo de ir às ruas. Exemplo: sonhadores são aqueles que fecham o trânsito e abrem horizontes.

17 de junho de 2013

Em sépia

Hoje, pelas veias da cidade,
não corriam automóveis
com buzinas de cor cinza

escorriam sentimentos
de osso-e-carne
e gritos que, por muito tempo,
estavam encarcerados
em nossos peitos

amassamos nossa fotografia velha
que, em sépia, escondia as cores
de nossos sonhos

nunca vi Maceió tão linda

10 de junho de 2013

Ponto-de-vista

Para as minhocas
os passarinhos não voam
eles aterrissam e decolam arrancando
o que ambicionam em desmedida gula

para as árvores
eles também não têm asas
saltitam de um galho ao outro
em esporádica preguiça

para os peixes
não voam os passarinhos
mas nadam no ar
com suas escamas aerodinâmicas

o voo dos passarinhos é uma questão de ponto-de-vista

4 de maio de 2013

Febril

Quando chegou, você
mostrou que não só o sol pode arder em chamas
alastrou fogo por meus olhos
que lhe miravam
e lhe cercavam os lábios

Quando você comigo esteve
enterrou sementes
que logo se gabaram
em arvoredos,
torrentes
e desejos

Quando você partiu
levou consigo a normalidade das coisas minhas
e o mês que se assentou irrequieto
entre Fevereiro e Abril
                                   febril
vestiu o nome de Saudade

1 de abril de 2013

Conto de fardos

Era uma vez, numa terra muito distante - que se afastava ainda mais, de acordo com quem a imaginasse -, pessoas que viviam sem contar as horas.

Lá não se criava egoísmo,
cultivava-se mesquinhes,
fabricavam-se salários
nem se plantavam hierarquias

A única privada que persistia era aquela que ocupa função central no banheiro: não havia posses como privilégios de um pequeno número de nobres de sangue azul

- descobrira-se que o sabor de tudo aquilo que se dividia,
além de afastar a fome,
sortia paladares ausentes até das melhores receitas do mundo.

O céu se tornara mais claro, e o escuro das noites mais profundo, como se as pessoas pudessem adentrá-los para escutar novos cantos, desrotinar beijos e regar poesias.

Lá não mais existia o verbo sobreviver,
as pessoas passarinhavam

11 de março de 2013

Des(amar)rar

Não exija afagos
abraços, nem apelos
o que aperta
não deixa respirar...

proíbe suspiros,
aquilo que amanhece
a surpresa da pele

quero o entardecer
do apelo
p[ê]los
póros.


(escrito a duas mãos com Geice)

5 de fevereiro de 2013

Carro Beh e outras verdades II

Aproveitara tanto o tempo que
quando se apercebeu
já era muito noite
e lá estavam
pingadas
no céu
duas
luas

Já era hora de cobri-las com suas pálpebras
e despedir-se do mundo daquele dia

esperava, quando acordasse noutra manhã,
montar, com seu quebra-cabeças sem encaixes,
novas euforias

17 de janeiro de 2013

Acabou despertare

Acordou com vontade de respirar o sol
abraçar a grama
e guardar seus amados amigos dentro do peito

Mas lembraram-no que ele estava proibido de viver seus sonhos
-pois a vida não é feita para sentir
ensinaram-no em tom conhecedor
"e para que servia então?"

Nunca se encantou com cofres cheios de papéis
que eram mais estimados do que gente
enojava-se com o menosprezo, a indiferença
e as diferenças
não queria um onde no qual todos se parecessem
apenas um quando no qual todos pudessem ser

Foi assim que desaprendeu sua caduca lição
para, algum dia, abraçar o sol
guardar a grama dentro do peito
e respirar seus amigos
amados

8 de janeiro de 2013

O corpo estirado

Aquele corpo
estirado na esquina
repousa sobre a suja calçada
e suja a caminhada daqueles que por ali transitam

Deitado,
indiferente aos passos que atrapalha,
não sabe o dono daquele corpo
o quão inconveniente está a ser
ao forçar os transeuntes a contorná-lo

como se alguém tivesse autoridade
para impedir o ir-e-vir dos outros

Está coberto por um velho pano
que talvez algum dia tivesse sido branco,

mas hoje está amarelo,
provavelmente fétido,
como sugere seu misto
de cores amarronzadas:

uma inadequação  de odores!

Além de incomodar os que tentam cruzar a calçada,
aquele corpo fede, e multiplica os desconfortos de quem passa

Imagina se, debaixo daquele tecido, emerge um rosto
que, com um miserável olhar de piedade, balbucia:
“o senhor pode me dar uma ajuda?”

do jeito que as coisas andam
não me surpreenderia com tamanha ousadia!

Os pestilentos acreditam
que sua condição degradada,
embrutecida,
é motivo o suficiente para nos aporrinhar,
seja para pedir moedas,
ou implorar por alguma comida
que suamos para comprar!

desde quando cochilar nos pavimentos,
por longas horas,
enriquece alguém?

não estudei para arrumar um salário
que alimente a preguiça
e estimule a mendicância!

Sem o direito de ser-e-sentir,
ali, no chão, está aquele corpo

na chuva e sol,
dia e noite,
vivo ou morto

o que está mais do que óbvio
é que bloqueia o meu caminho